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sábado, 5 de março de 2022

Líbia, Ucrânia e Otan – Onze anos depois, a mesma estratégia e a mesma indignação

Líbia, Ucrânia e Otan - Onze anos depois, a mesma estratégia e a mesma indignação

Por Robinson Pereira**

Em agosto de 2011, estava eu diante de dois líbios em um saguão de hotel em Túnis, conversando sobre a guerra que a Otan travava no país vizinho. Naquele ano, eu me encontrava na Capital da Tunísia junto com uma delegação convidada pelo governo líbio para observar as ações da aliança militar do Atlântico Norte na Líbia. Quase onze anos depois, o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, fez um discurso com duras críticas à Otan. Em 2022, estamos diante de uma nova guerra, mas a Otan continua a mesma.

Habil Aribi Doui era um ex-militar líbio, então com 47 anos, contratado para ajudar um grupo de compatriotas a retornar ao país com uma carga de remédios. Eu o entrevistei durante pouco mais de uma hora, com alguns momentos “off records”. Mesmo quando a câmera estava desligada, ele não confirmou que estava na “folha de pagamento” da Otan, mas deixou claro seu posto de “consultor militar” naquela guerra. O líbio de expressão séria, mas não contrita, controlava muito bem as palavras quando questionado sobre como a Organização do Tratado do Atlântico Norte estava entregando armas, munições, treinamento e assistência técnico-militar em solo líbio. “Eles lançam tudo pelo ar”, dizia, sugerindo que os materiais chegavam aos inimigos de Gaddafi caindo de paraquedas dos aviões da aliança militar.


A habilidade de lançar dinheiro e equipamentos, segundo Aribi Doui, não era a mesma para lançar bombas contra as forças regulares do líder líbio. O mercenário (sem papas na língua, era essa a profissão do líbio naqueles dias de chumbo) contava que por mais que os destacamentos militares regulares líbios estivessem visíveis nas regiões periféricas das cidades, em pleno deserto, a Otan teimava em evitar tais alvos. “As forças da Otan não têm salvado civis. As forças de Gadaffi matam civis todos os dias. A Otan não tem bombardeado as forças de Gadaffi todos os dias. A Otan não age e não enfrenta as forças de Gadaffi. A Otan não olha pelos civis na Líbia!”, denunciou.

Quase 11 anos depois, o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, age como um homem seduzido e abandonado por uma aliança militar anacrônica. "A Otan decidiu deliberadamente não cobrir os céus da Ucrânia... Acreditamos que os países da Otan criaram uma narrativa de que fechar os céus sobre a Ucrânia provocaria a agressão direta da Rússia contra a Otan. Essa é a auto-hipnose de quem é fraco, inseguro por dentro, apesar de possuir armas muitas vezes mais fortes do que nós", afirmou Zelensky. O tom de decepção era o mesmo na voz de Habil Aribi Doui cada vez que pronunciava a sigla de quatro letras.

Os discursos do mercenário e do presidente, separados por mais de 10 anos, sugerem um modus operandi padronizado. A Otan mandou dinheiro para que clãs opositores de Gaddafi pudessem pagar mercenários em uma guerra de guerrilha contra um exército regular. Enviou armas, munição e provavelmente foi responsável pelo desenvolvimento dos conhecidos “técnicos”, caminhonetes civis equipadas com lança foguetes, que os líbios passaram a montar às centenas. Mas na hora dos ataques aéreos, parece ter preferido - pelo menos até os últimos dias da guerra - esperar que os dois lados fossem devidamente fustigados, enfraquecidos.

Já a Ucrânia dos dias de hoje recebe criptomoedas como auxílio para a guerra. Mas ninguém luta com bitcoins. O dinheiro digital está disponível para o pagamento de mercenários. A entrada destes  no país já foi liberada pelo próprio Zelensky, que passou os últimos dois anos conversando bem de perto com o dono da ex-Blackwater, o norteamericano Erik Prince. Fuzis, foguetes anti-tanques e munição, são citados em promessas francesas e alemãs, mas o que o ex-comediante quer mesmo é o poder de fogo aéreo da aliança ocidental. E, até agora, recebeu apenas um banho de água fria.

Retrocedendo um pouco mais no tempo, lembramos que em 1991, os opositores de Saddam Hussein já haviam aprendido que não dava certo confiar plenamente nas forças americanas e europeias. Depois de 2003, o mundo percebeu que não dava para confiar em tudo que os signatários da Otan dizem quando o assunto é guerra, já que o Iraque não tinha armas de destruição de massa que justificassem uma invasão. Anos depois, a criação de um coeficiente para recalcular a quantidade de baixas civis da Guerra ao Terror mostrou mais uma vez que de boas intenções o Inferno está realmente cheio.

Eu não tenho dificuldades para fechar os olhos e imaginar o mercenário Habil Aribi Doui olhando, através de potentes binóculos militares, as tropas leais a Gaddafi sendo sobrevoadas incólumes por bombardeios da Otan, assim como consigo imaginar Volodymnyr Zelesnky deprimido diante de um ringlight aceso depois de uma live cheia de bravatas e imprecações contra Putin. O sentimento que liga esses dois momentos históricos é um só: indignação.

** Robinson Pereira é jornalista e integrou em 2011 uma delegação convidada pelo governo Líbio, em 2011, para testemunhar os bombardeios da Otan na Líbia. Robinson é autor dos romances de espionagem “Souvenir Iraquiano” e “Fronteira” e defendeu mestrado na UFSC exatamente sobre este gênero literário.