Resenha do filme Reza a Lenda
Quando assisto um filme de aventura, de ação, eu gosto de
prestar atenção às armas. Acho que a escolha das armas diz muito sobre como a
produção quer tratar o público que está acostumado com o gênero – os insiders.
Reza a Lenda passa por esse teste. E passa por mais testes. Acabei de voltar do
cinema e não consigo parar de pensar nas possibilidades que esse filme abre
para o cinema nacional.
Quando é que alguém, há 10 ou 20 anos, iria imaginar um
filme brasileiro em que alguém usasse uma minigun (uma metralhadora no estilo
Gatling, uma M134, calibre 7,62 com barragem de tiro traçante) uma arma típica
de filmes de guerra estilo Vietnã, filmes de Rambo ou Schwarzenegger?
Estávamos no auge da herança cinemanovista/nouvelle
vagueriana de Glauber Rocha, com seus herdeiros destilando veneno contra o
cinemão norte-americano, dizendo que a sétima arte tinha como única função
doutrinar o proletariado na luta de classes. O que escapava disso eram os
agraciados pela Embrafilme torrando dinheiro público na loteria de ganhar
prêmios de crítica. Público? Nem pensar! Fazia-se filme para os amigos.
E enquanto o cinema brasileiro havia virado um clube de
intelectuais engajados, o cinema norte-americano doutrinava o mundo e... quem
diria, os brasileiros.
Acontece que o público, no final das contas, move o cinema.
Os franceses, que inventaram a Nouvelle Vague e tornaram o termo “filme francês”
um sinônimo de “filme hermético, cabeça, autoral”, acabaram descobrindo que nem
só os americanos podiam fazer histórias de alcance universal.
Os heróis de capa e espada, de pistola na cintura e chicote
na mão não eram propriedade exclusiva do cinema norte-americano. Descobriu-se
que a aventura, a ação, era coisa de seres humanos contando histórias de suas
caçadas de mamutes, os dramas vividos na guerra, as lutas contra os clãs do
outro lado da montanha. Com isso, o cinema francês foi um dos primeiros a
mandar às favas o preconceito de fazer cinemão.
Hoje em dia, no Brasil, depois de Tropa de Elite 1 e 2, 2 Coelhos, Federal, Segurança Nacional, Operações Especiais, estreia Reza a Lenda e bota o
pau na mesa e diz: “podemos fazer filme de ação, ter heróis falando em português,
reinventar a realidade e – sim – divertir bastante”.
O diretor Homero Olivetto, que divide o roteiro com Patrícia
Andrade e Newton Canitto, entregou um filme enxuto, vigoroso e empolgante. Cada
integrante da produção, dos roteiristas ao iluminador, figurinista, o que quer
que seja, está de parabéns porque fez história.
E por que fez história? Isso é um exagero? Não, pois o filme
realmente será considerado um divisor de águas, a obra que separa o tempo em
que realizadores se obrigavam a entregar um trabalho que tivesse cunho social,
que fosse necessariamente moralmente ambíguo e tivesse qualidade técnica
aceitável.
1.
Reza a Lenda não é moralmente ambíguo: a linha
que divide mocinho e bandido, protagonista e antagonista, é clara. Nada de
ficar justificando que o protagonista é um anti-heroi, mimimi, etc. Ara, vivido
por Cauã Reymond é um herói, e ponto final.
2.
Reza a Lenda pincela uma preocupação social, mas
não é didático, não é engajado. O drama social está lá pelo mesmo motivo que as
crianças estão trabalhando escravizadas em túneis em Indiana Jones e o Templo
da Perdição: está lá para ser tratado como vítima, para existir algo que o herói
deva salvar.
3.
Tem uma baita qualidade técnica. E a minigun
(mais uma vez) se encaixa neste quesito. Qualidade técnica é respeito com o
público.
Apesar de todos os seus pontos positivos, Reza a Lenda tem
um defeito: ser um dos primeiros filmes do gênero no Brasil. Como primeiro a
chegar, causa estranheza, bate de frente com um público acostumado a ver heróis
que se chamam Jack, Thomas, e que se digladiam com inimigos em cenários
estranhos para nós, vivendo dramas que às vezes nem sabemos se realmente
existem, mas acabamos acreditando por estarmos acostumados a isso.
Como tive a honra de falar ao próprio Homero Olivetto, em
conversa após ter saído do cinema, o boca a boca vai fazer a carreira de Reza a
Lenda. A resistência ao produto nacional vai cair a cada pessoa que assistir o
filme e sair de lá dizendo: “Caramba, não é que é bom mesmo??? Não é que eu me
diverti mesmo? Não é que não fica nada devendo a filmes estrangeiros do mesmo
gênero e patamar de produção?”
Assim, Reza a Lenda vai ocupar seu espaço, cumprir sua
missão de abre alas do nosso cinemão, que já está se especializando em comédias
e tem mostrado bons resultados em filmes policiais (apesar de serem, por
enquanto, de uma nota só, com uma mesma temática).
Como já se dizia, no final do século passado, reza a lenda
que o cinema brasileiro ainda vai ter herois. Quem sabe eles possam ajudar a formar
uma sociedade menos ambígua, com uma linha mais clara entre o que é certo e o
que é errado. Pois é. Reza a lenda...
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