Dina amarrou todos seus pertences mais uma vez na semana. Cabia tudo em uma trouxa um pouco maior que sua própria cabeça, e era exatamente sobre ela que seria carregada, enquanto a criança menor, com apenas alguns meses ia pendurada às costas e os mais velhos caminhavam usando sandálias feitas de garrafa de plástico. O sol era mais do que quente naquele pedaço do planeta, lembrando o que poderia ser o inferno. Mas Dina era movida por algo mais forte. Algo ignorante e forte, que a demovia da idéia de desistir simplesmente porque não tinha mais nenhuma opção fora continuar tentando ou deitar no solo e esperar a morte. Mas ela havia decidido – movida por aquela força – que deixaria para morrer em outro dia. Talvez amanhã. Mas, decididamente, não naquele dia. Três vidas dependiam dela.
No outro lado do mundo, um plano dava errado. Estupidamente errado pelo simples fato de que o homem branco havia acreditado ser superior ao índio. Pelo menos em inteligência. Mas Deus teria feito todos nós à sua imagem e semelhança, e por isso técnica e teologicamente seríamos todos iguais. E com isso os garimpeiros não haviam contado.
Antes que percebessem que os índios não estavam acreditando que todas as pedras estariam sobre a mesa, o facão desceu, por trás, no ombro do mais jovem, cortando-o até na altura do peito, fazendo o braço tombar para o lado. O barulho do metal cortando pele, carne e osso ardeu no ouvido dos outros dois, e o sangue espirrou por todo lado, enquanto o garimpeiro ferido rodopiou ao cair, misturando estado de choque com a morte pura e simples.
- Entrega tudo! – gritou o índio mais forte, um armário de três portas, sem camisa, com uma cordinha vermelha cruzada pelo peito e uma pistola Desert Eagle niquelada na mão direita. Não era uma arma barata de se trazer de Israel, e não fora tendo muito paciência que Chicão conseguira dinheiro para tanto.
O segundo garimpeiro tombou para trás com mais cinco furos no rosto. O terceiro garimpeiro gritou por todos os santos e começou a soltar o cinto. “Eu entrego! Eu entrego”, soluçava, temendo o pior. Os índios esperaram o homem tirar as calças e remover a pedra gigantesca do meio das nádegas.
- Por isso o homem andava engraçado – disse um dos índios para o Chicão, que mandou o branco correr com o que lhe era de direito. Mas não com aquela pedra que queria roubar. Para o garimpeiro não fora tão ruim assim. Pelo menos não precisaria dividir mais com ninguém.
- Eu sei o que eu quero. E o que eu quero é algo forte. Algo muito forte, para resolver este problema de uma vez por todas. – os metais da farda reluziam, mostrando o que deveria ser uma história de uma carreira militar ilibada, longa e gloriosa. No entanto, toda aquela lataria não representava nada além de uma pilhagem de outros peitos, de outras fardas e outras carreiras militares – e outras pilhagens também. Ou seja, não valia nada sem o cano de uma arma para garantir-lhe a hierarquia. Funcionava sempre assim na África.
À sua frente, o homem branco, praticamente albino, não se incomodava nem um pouco com a história daquela lataria no peito do negro. Já vira muito daquilo naquele lado do Atlântico. Os homens mais armados sempre latiam mais alto, mas não mordiam todos simplesmente porque adoravam ficar cercados por aduladores. O que importava era apenas o pagamento. “Você precisa lavar um pouco suas pedras. Isso vai garantir mais valor. E se tiver mais valor, poderá comprar qualquer coisa... ou pelo menos quase qualquer coisa.”, explicou, arrancando uma gargalhada do africano.
- Você é muito engraçado! Se não fosse tão engraçado eu não confiaria em você. Mas diga o quanto você precisa para lavar uma quantidade suficiente para eu comprar o que eu quiser?”
- O que você me disponibilizar.
- Eu tenho um contêiner cheio. Pronto para você levar.
O vento sacolejou a folhagem e levantou a poeira. Os índios estavam inertes, inabaláveis diante do trovejar das hélices cortando o ar. Eram os donos da terra. Haviam estabelecido suas posses com a força. Era assim que se sentiam.
E como donos da terra, podiam fazer o que quisessem com o que ali desse. E faziam, apesar de não haver lei para isso.
O helicóptero pousou na terra avermelhada e nua do centro da clareira e com o rotor ainda girando os homens brancos desceram. Estes são homens brancos confiáveis, pensou o índio-chefe, mas nem por isso esboçou um sorriso. Os Cinta-Larga não costumam ficar rindo muito, e aqueles índios não costumavam fugir à regra.
- Chefe! - disse o índio.
- Chefe! - disse o branco.
Homem branco e índio trocaram saudações.
- O que temos aí, chefe? Fez tempo bom a semana inteira, não é? Seus homens trabalharam bastante, hein?
- Tempo bom. Trabalho bom. Muita pedra aqui. - o índio chamou o chefe branco para uma mesinha de ferro com uma desgastada logomarca de cerveja no tampo. Depositou uma sacola de pano na superfície e a abriu. - Mil e quinhentas pedras, chefe.
- Meu Deus, chefe! Vocês são umas máquinas mesmo, hein? Isso é que é trabalho! - e dá um tapa com as costas da mão esquerda no braço de seu piloto - se eu tivesse gente competente assim na Capital, hein?
- Tem mais, chefe.
- Mais o quê?
E o Cinta-Larga sorriu, como costumava fazer somente em ano bissexto, abrindo a mão direita e mostrando uma pedra do tamanho de um punho.
O chefe branco estreitou os olhos para vislumbrar melhor a pedra. Nunca vira nada igual. Um sorriso também esboçou-se em seus lábios finos. Fez uma mesura, como se perguntasse “posso?” ao índio.
- O chefe está pagando por isso...
Levou a pedra à altura do rosto. Ainda bruta, apresentava transparências. O chefe branco ainda não sabia que sangue já havia sido derramado por aquela pedra, mas sabia muito bem que muito sangue já fora derramado pelo garimpo como um todo, em toda a sua história. Continuaria sorrindo de um jeito ou de outro. Tudo tem seu preço, não tem?
- Ainda bem que trouxe churrasco e cerveja. Isso merece uma comemoração!
- Isso vale uma picape como a sua, não vale? - perguntou o chefe Cinta-Larga.
- Vale, chefe. Vale. Com ar-condicionado e tudo mais.
O albino havia conferido que realmente havia um contêiner cheio das pedras. Eram centenas, beiravam os milhares. Mas eram diamantes marcados, sem certificados de procedência. Era preciso tirá-los da África para que pudessem valer mais. Vendê-los ali era mais do que tolice, e ele não começara ainda a rasgar dinheiro. O ideal seria enviar para a Europa, onde ficavam os grandes centros processadores daquelas pedras – a indústria de verdade. Organizou tudo dentro de embalagens menores para evitar que os ovos se quebrassem todos na queda da mesma cesta e assim foi. Um esquema organizado há anos – e funcionando infalivelmente – levou as pedras ao Brasil. Vinte por cento delas deixariam de ser suas imediatamente, para ficar nas mãos dos agenciadores. De lá, ficaria livre dos salafrários que queriam se aproveitar do fato de os diamantes de seu cliente não serem tão limpos quanto aparentavam ser. Nesse ponto, começaria outro problema.
Assim como as rosas, as pedras não falam e não reclamam por estarem sufocadas dentro da cueca de alguém. Por isso o sistema era perfeito. Porque as pedras não falam e não aparecem no detector de metais.
O homem caminhava com tranqüilidade apesar dos 500 diamantes grudados em seu saco dentro de uma espécie de fralda. Estavam grudados em seu corpo, como que para lembrar que ganharia uma bolada assim que conseguisse sair do estado com aquilo tudo na virilha.
Era tão ignorante, mas tão ignorante que aquela era sua quarta viagem. E o pior: não sabia que seria a última.
Ele era uma parte de um esquema considerado à prova de falhas. Fazia o transporte das pedras tomando o rumo contrário da fronteira - para onde normalmente levariam algo para sair do país - afastando-as da selva de onde saíra, direto para uma grande cidade do sudeste.
As crianças estavam morrendo rápido. A comida que a Cruz Vermelha entregava chegou mais tarde do que devia. A água salobra já havia dado conta do recado e enfraquecido ainda mais os mais fracos. Dina pensou em chorar, mas sua visão cartesiana do mundo não permitiu. Acotovelou-se no meio dos outros refugiados para chegar perto dos caminhões. E quem não chegasse ali, perto o bastante para pegar a comida?
Agarrou-se ao saco de comida e saiu correndo. Pessoas que estavam mais atrás tentavam arrancar o pacote de suas mãos. Dina mordeu braços para abrir caminho e saiu com gosto de sangue na boca e as costas doloridas de tantas bordoadas. Mas o pacote estava inteiro.
- Aceita um refrigerante?
A aeromoça era uma morena pra lá de normal. Bem diferente do que todo mundo gostaria que fosse uma comissária de bordo. O homem aceitou a bebida - mais uma cerveja preta. Não haveria problema em ir ao banheiro. Nenhuma pedra cairia. Era a sua quarta viagem. Sua experiência era tamanha que não suava, não gaguejava, não olhava para os lados e ainda parara para comprar um best-seller - típico de quem não gosta muito de ver aquela rede de TV interna de aeroporto. Pensava que ainda processaria os caras que faziam aquela programação desgraçada que durava menos de 4 minutos. Aquilo poderia enlouquecer alguém. "É verdade", pensava.
Entrou no táxi e disse o caminho certo, com segurança, para não dar a impressão de ser turista em Belo Horizonte. Costumava pensar toda vez que colocava os pés em Minas Gerais: o que fazem os turistas aqui? Mas ele não era turista e sabia muito bem o que fazer.
A pedra era um pouco maior que o de costume. Para falar a verdade, era bem grande e fazia com que as bolas dentro de seu saco perdessem o paralelismo usual. Mas, como sempre, ele conseguia disfarçar.
Mas no táxi, ele decidiu que bastava e desafivelou o cinto e enfiou a mão dentro da calça, da cueca e tirou a pedra que estava escondida entre sua bola direita e sua virilha. Alívio (você não sabe como é longa a viagem de Rondônia até Minas Gerais).
Somente um produto deixaria o comandante satisfeito, e o albino sabia muito bem qual seria e onde poderia encontrar. Significaria uma viagem a mais, e longa. Mas não queria pensar em mais uma poltrona de avião naquele momento. Seu vôo acabava de chegar no Brasil. Tinha burocracia pela frente: distribuir alguns punhados de dólares na alfândega para liberar os pacotes e depois encontrar o libanês. Esperava não perder tempo ali. Era Brasil, um paraíso tropical, mas estava longe da praia.
- Larga isso. - disse o homem com a pistola na mão direita.
- Por favor, eu não estava querendo fazer nada com isso! É que tava incomodando o meu saco, eu agüentei mais de 12 horas com isso nas bolas...
- Larga, por favor, e vai para aquele lado. - o homem sacolejou a arma para indicar a direção, enquanto observava os primeiros diamantes sendo depositados sobre a mesa.
Ninguém deu atenção para o fato do paralelismo das bolas do saco do mula. Até mesmo porque o mula já estava "passado" para aquele serviço. Só ele não havia percebido que quatro viagens já era demais. Mas percebera que o lado para onde o empurravam estava mais próximo da torneira. Era um mau sinal.
- Tudo bem! Tudo bem, eu não recebo nada dessa vez, pra mostrar que eu sou leal mas só que... - o projétil de 6,35mm entrou precisamente acima de suas fossas nasais. Entrou ali como uma sinusite bem forte, desgraçada mesmo, mas se espalhou rapidamente quando o projétil descambou para a direita, rasgando uma porrada de capilares e encharcando seu cérebro e seu aparelho respiratório externo com sangue. Cambaleou tossiu e já não pensava mais na dor no saco.
Enquanto ele ainda tentava entender o motivo de sua respiração estar tão difícil e sua visão ter ido embora (morreria em um minuto), o autor do tiro fez a pequena pistola sumir no bolso do paletó e pegou a pedra maior, que fora a última a ser depositada sobre a mesa.
- As outras vocês pegam.
Ele nunca enfiava a mão no saco de ninguém.
- Olha o que o filho-da-puta tinha no meio do saco, porra!
O libanês olhava para a pedra quase do tamanho de um punho, trocava o foco do olho direito, da pedra para o funcionário, do funcionário para a pedra: - Isso aqui deve ter incomodado muito aquele pobre coitado.
- É tudo a mesma coisa.
- Tudo a mesma coisa é um caminhão cheio de AK-47.
- Desculpe, mas é tudo a mesma coisa.
O libanês girou o pescoço de um lado para o outro, estalando os ossos da extremidade da coluna vertebral. O especialista contratado pelo albino não piscou, nem modificou a respiração. Apenas olhava para o libanês e o albino, fazendo sua parte numa das partes mais complicadas do processo, que era possibilitar um “escambo” entre os dois proprietários dos diamantes brasileiros e africanos. A idéia era misturar os diamantes, para que, numa análise mais precisa, o albino pudesse sempre passar por um comprador de pedras brasileiras, com procedência comprovada.
- Escutou o que o homem diz... – recomendou o Albino. Ele estava tranqüilo.
- Escutei a merda do seu homem e isso não significa nada para mim - disse o libanês, em árabe. O albino apenas esboçou um leve sorriso de condescendência. - Eu não concordo com seu especialista. Nem eu, nem meio mundo. Nem 98% dos geólogos do planeta.
- Este homem aqui É 99% dos geólogos do planeta.
- Você pode usar este seu discurso com este material que vem da África, essa ralé. Mas isso aqui é diferente. Você sabe que é diferente. A formação geológica é diferente. É de um kimberlito especial de onde saem essas pedras. Olhe as pontas, a coloração, o peso. Isso é um diamante de verdade!
- Você tem razão. É uma pedra e tanto. Chama muito a atenção. Será que é disso que eu preciso?
- Você precisa da camuflagem que uma pedra desta é capaz de lhe dar. Por isso que estou com ela aqui. Porque sou seu amigo.
O albino sorriu, condescendente. Não queria demonstrar a um árabe o que estava pensando. Seria possível? Claro que sim. Basta manter a calma e ficar tranqüilo. Pensou que era como enganar uma mulher, fingir que estava querendo uma coisa e fazer outra. Dizer que não conhecia a fulana e pronto. E parecia estar funcionando.
- Eu fico com a pedra, mas não por este valor. - e tomou a pedra com a mão direita, procurando olhá-la com um falso desdém.
O sistema era simples, apesar da complexidade que envolvia todo o transporte dos diamantes. Consistia em misturar os diamantes africanos com diamantes extraídos no Brasil, forjar uma documentação indicando que todas as pedras eram oriundas de garimpos regulares de Minas Gerais e pronto, o certificado de Kymberley estava na mão. Muitos quilates eram desviados assim de garimpos irregulares, como o de onde viera a pedra do tamanho de um punho que estava agora dentro da maleta do norueguês. E aquela pedra em especial, dentro da remessa que acabara de legalizar, era motivo de extrema felicidade. Não era uma pedra raríssima, tampouco vulgar. Juntamente com quase um quilo de diamantes brutos do oeste africano, poderia ser o suficiente para quebrar a resistência para um pedido muito especial. Precisava ser muito rápido, pois o prazo era apertado. Por isso pegara o Legacy de um amigo e partira novamente para Montreal, após enviar imagens em JPEG da mercadoria. A presença do Volvo na pista do aeroporto demonstrou bastante interesse da outra parte.
- Eu não vou questionar a qualidade do produto dentro desta mala - disse o canadense, apoiando as mãos, cruzadas, sobre a valise - porque sei de onde elas vêm.
- Não. Algumas delas vêm de um garimpo muito especial, no Brasil.
- Conheço as pedras brasileiras...
- Estas foram prospectadas do solo por indígenas.
A frase fez com que o canadense arqueasse as sobrancelhas. As pedras de Rondônia eram conhecidas dentro do métier por serem de qualidade inquestionável, e as medidas e o peso descritos pelo albino ganhavam um outro significado agora.
- Acredito que não seja preciso convencê-lo do valor que tem nas mãos... - disse o albino.
- Não precisa mesmo. - e o canadense fez uma pausa, parecendo pensar duas vezes, e abriu a valise. Levantou a cobertura de feltro negro e viu a pedra, no meio de centenas outras - Presumo que ela já tenha um nome. Ela tem um nome?
- Na verdade não. Mas eu acredito que uma Jardineira seria mais do que conveniente - respondeu o albino, provocando um sorriso no rosto do canadense.
- Sem dúvida, sem dúvida. E acho que esta pedra, esta remessa, é claro, é capaz de abrir para o senhor as portas de um clube seleto.
- Isso seria, sem sombra de dúvidas, fantástico.
- Preciso de apenas 24 horas para negociar com alguns contatos ao sul Rio Hudson, e assim conseguir o que precisa. Somando o transporte de avião até aqui, acredito que sua encomenda estará disponível em Djibut dentro das próximas 48 horas.
- Seria maravilhoso. Mas por que no Djibut?
- Porque lá eu tenho um Antonov para emprestar a você e seu cliente. Penso que vocês dois ficarão ainda mais felizes se não precisarem gastar ainda mais com a aquisição de um Hércules para fazer o serviço, e sei que os seus próprios Antonov estão ocupados em outras atividades ao longo do planeta.
- O senhor está completamente correto. Isto resolve um punhado de problemas logísticos.
- Basta dizer onde e quando é preciso fazer a "entrega".
Dina sentiu-se um pouco mais inútil. Não eram mais três vidas que dependiam dela. Eram apenas duas. Com as unhas sangrando após ter cavado o solo seco, empilhou algumas pedras em cima do que seria a sepultura de sua filha mais nova. Três anos. As outras duas crianças estavam olhando, silenciosas. Não havia muito a dizer entre os refugiados, nada que pudesse acrescentar alguma coisa, que pudesse aplacar a dor. Apenas seguiam em frente.
Depois de depositar a última pedra na pilha de pedras, levantou-se com dificuldades e abraçou as crianças. Quanto faltava para cruzar a fronteira? Não tinha idéia. Apenas olhava adiante, no céu escuro, ouvindo de trás os estampidos de tiros e explosões ao longe. A guerra estava chegando perto, e eles tinham apenas as pernas para leva-los para a segurança do outro lado da linha imaginária que separava a loucura de seu país de uma possibilidade de continuar uma vida digna. Mas ela sabia que os pesadelos continuariam para sempre.
A Diaman era uma transnacional com capital declarado superior muitas vezes ao PIB de praticamente toda a África. Era uma mega empresa que enriquecera, ironicamente, graças à África. Ela dominava uma grande fatia do mercado de diamantes em todo o planeta, fornecendo pedras de todos os tipos e tamanhos para as mais diferentes finalidades que elas pudessem ter, desde jóias ornamentais até aplicações industriais. O lucro era exorbitante, principalmente porque a Diaman trabalhava com diamantes legalizados e também com os contrabandeados. Para a empresa, o protocolo de Kymberley não era nada além de um pequeno incômodo com o qual precisava se preocupar esporadicamente, distribuindo dinheiro dentro de uma extensa rede de corrupção que envolvia diversos organismos internacionais (ou melhor, pessoas dentro destes tais organismos internacionais).
E foi exatamente uma dessas ligações com organismos internacionais que facilitou a negociação para a compensação do custo da Jardineira. Não foi preciso nenhum encontro escuso, secreto, mas apenas um telefonema. Um oficial de alto escalão do Pentágono atendeu o celular e percebeu que precisava de uma linha segura. Estava correndo naquele momento, fazendo seu jogging, e assim foi fácil encontrar um telefone público. Um scramble do tamanho de uma moeda colocado no bocal do telefone e, pronto. A Agência de Segurança Nacional não conseguiria identificar sua voz.
- Preciso de uma Jardineira para um cliente especial.
- Temos alguma dessas no Afeganistão, mas não sei bem...
- A idoneidade deste cliente é inquestionável. - quando o canadense dizia aquilo, queria afirmar que não haveria riscos da encomenda ser usada contra alvos norte-americanos.
- Você acha que é possível remover uma delas sem que ninguém perceba?
- Olhe, tudo é possível no Afeganistão. Mas não sei. Nunca foi vendida uma dessas.
- Martin, em menos de 20 segundos seu celular vai receber um SMS de seu serviço de home-banking. Isso significa que foi feito um depósito em sua conta. Confira.
Não levou 20 segundos, mas apenas 13. Martin consultou com o celular o saldo de sua conta bancária e ficou feliz pelo fato de um dia ter desviado um caminhão com munição 5,56mm para aquele bom canadense enviar ao movimento sérvio. Em menos de 10 anos aquele simples favor o havia transformado em um homem rico. Nos últimos 15 segundos, tornara-se um homem riquíssimo.
- Meu amigo, é só de uma cortadora de margaridas que você precisa?
O sistema Echelon foi considerado durante muitos anos apenas uma lenda, um delírio de teoristas da conspiração. E era essa a grande vantagem do Echelon, o fato de que ninguém acreditava nele.
Apesar do scramble ter disfarçado a voz de Martin, a ponto de impedir que o cadastro de voz que tinha junto à ASN de nada servisse para identificação e rastreamento de chamada, as palavras que proferira no final da conversa fora registrada pelo algoritmo do Echelon. Municiado por centenas de microprocessadores SuperCray, o Echelon identificou "cortadora de margaridas" como o apelido da bomba BLU82B/C130 (os últimos três dígitos referentes ao veículo necessário para seu transporte e lançamento, o avião Hércules C130), conhecida como Daisy Cutter. Ou seja, ninguém no mundo fala Daisy Cuter no telefone sem que alguém levante as orelhas.
O apelido singelo vinha do seu modo de funcionamento. Com quase 7 toneladas de explosivos convencionais à base de nitratos e hidrogênio, a Daisy Cutter era programada para explodir a um metro do chão, lançando uma onda de impacto capaz de devastar tudo dentro de um raio de 500 metros. Era praticamente como um artefato nuclear, mas sem a produção de radioatividade pela sua explosão.
Como o Echelon identificou "cortadora de margaridas" e fez uma relação com a arma das forças norte-americanas, o programa de computador abriu imediatamente um protocolo de verificação de alto nível. Segundo a doutrina sob a qual o Echelon havia sido desenvolvido, este protocolo seria imediatamente verificado por agentes humanos, que colocariam atenção especial sobre o assunto. Mas acontece que o mundo crescera e, com ele, seus sistemas de comunicação. Hoje em dia há internet, celulares, SMSs, mensagens multimídia e um sem fim de meios de enviar e receber mensagens. E as pessoas no mundo inteiro comentavam ainda as notícias que ecoavam pelo planeta, repercutindo, gerando novos dados, novos fatos, websites, foruns de discussão e, enfim, o Echelon precisava de muito mais tempo do que antigamente. Quarenta e nove horas, para ser exato, até que o protocolo deixasse de ser apenas uma suspeita, para que se fizessem novos cruzamentos de dados e avaliações.
Em 44 horas a Daisy Cutter estaria no Dijbut.
As loiras haviam sido contratadas em uma pequena cidade no Rio Grande do Sul e estavam ganhando dinheiro suficiente para, na volta, comprassem seus próprios apartamentos. Era difícil levar garotas como aquelas para a África. O albino desistira de tentar norte-americanas, porque eram racistas demais. As européias eram caras e sem graça demais. As brasileiras pareciam ser desenvoltas o suficiente em vários continentes e caíam no gosto dos líderes africanos: não eram racistas e custavam mais barato.
O coronel tinha o hábito de testar a mercadoria na frente do mercador, e isso não constrangia mais o norueguês, que nas últimas vezes já começava a contabilizar uma certa queda do rendimento de seu cliente. Chegou até a esboçar um sorriso, imaginando o que o coronel diria se ele apresentasse seus números.
- O coronel está demonstrando menos fôlego. Será por causa da idade ou está perdendo o gosto pelo assunto?
Apenas pensou. O homem era um assassino, um animal. Quando despertou do devaneio, o coronel já se aproximava, fechando as calças.
- Muito boas, meu amigo. Vou continuar depois, depois que você me contar se deu certo a encomenda que eu pedi.
- Está como programado. Dentro de duas horas estará liberada no Djibut. Virá em um Antonov e lançará na posição que o senhor apontar.
- Uma Daisy Cutter? Uma cortadora de margaridas? Uma das que George W. Bush jogou em Tora Bora que quase que aplainou o terreno?
- Essa mesma, coronel. E não foi fácil conseguir. Vai custar uma comissão de 25% a mais.
O coronel abriu um largo sorriso, as mãos na cintura, o peito nu, os dentes brancos reluzindo em meio à pele negra. Soltou uma gargalhada infantil, como a criança que conseguiu seu brinquedo. Ele poderia ter feito um cálculo rápido para averiguar quanto economizaria em cartuchos de AK47, mas isso não faria sentido, porque ele não permitia que seus homens usassem outra coisa que não o machete em suas matanças.
- Eu tenho uma Daisy Cutter!!! Quem diria! E só tenho que dizer onde lançar?
- Só precisa passar as coordenadas. Só isso.
- Manimba!!! Manimba! Eu quero a posição dos refugiados. Agora!
O silêncio fez com que Dina acordasse no meio da noite. Por mais distantes que estivessem, os ruídos das explosões e dos tiros sempre causavam apreensão e atrapalhavam o sono. Demorava a acostumar com aquilo. Dina ficava imaginando se os ruídos estariam mais alto ou não, se estavam chegando perto. Mas simplesmente haviam parado.
A matança teria acabado? Ela se levantou e saiu de baixo da barraca, andando lentamente, procurando não fazer barulho. Aguçou a audição. Não dava para ouvir mais nada. A guerra teria acabado? Ela se deixou enganar com a idéia de que tudo voltaria ao normal e que poderia retornar a sua cidadezinha, para as coisas que deixara para trás... mas encontraria o que por lá?
Quando percebeu, estava chorando. Uma lagrimazinha única, solitária, rolando pelo seu rosto. Chorava pelo quê? Motivos não faltavam, mas se não havia chorado ao ver a pequena Tila morta, o que estava fazendo com que chorasse?
Piloto e co-piloto tinham um forte sotaque europeu. Quem conhecesse realmente línguas, diria que havia traços boweres. Estavam apenas os dois no Antonov. O piloto confirmou os dados que recebera pelo iridium. Estavam quase no local, segundo seu GPS. Olhou para baixo.
- Vê algum sinal de uma cidade?
O co-piloto inclinou-se para a janela e contorceu os lábios. Não via luz alguma. Era somente o coração da África.
- Então vamos lá. Jogue essa porra lá embaixo.
O co-piloto desafivelou o cinto e saiu da cabine do Antonov. O avião estava bem estável. Caminhou tranqüilamente até o compartimento de carga, vestiu as luvas para manusear as presilhas da bomba. Não queria ferir as mãos caso algo se soltasse ou rompesse com força.
Não pensou em nenhum momento sobre o que estaria lá embaixo. Ninguém jogaria bombas sobre o nada, sobre coisa alguma, não é? Mas não questionou nada. Apenas soltou a segunda presilha. Faltavam mais duas e o engate.
Poderiam estar querendo devastar uma grande área da floresta com apenas um golpe. Poderia ser isso. Apenas alguns macacos morreriam.
Pensou nisso e sentiu-se leve na hora de puxar o engate. Sete toneladas de explosivos desceram pela porta traseira do Antonov.
Dina caminhava de volta para a barraca pensando que realmente havia uma chance de recomeçar, mesmo que tivesse perdido tudo. Ela era uma mulher forte e tinha duas filhas para continuar com a saga de sua família, para lembrar do seu marido, morto há semanas, um pouco antes de começar aquela caminhada sem fim ao lado de milhares de pessoas.
Havia chances sim. Retornaria para o local onde estava a sua casinha, consertaria o que fora destruído com a guerra e a deixaria pronta para ser novamente um lar. Um lar simples, mas perfeito para ela e suas duas meninas. Daria certo. Tinha que dar certo.
Ela aguçou os ouvidos novamente, tentando ouvir os combates ao oeste... Nada.
Apenas um silvo no ar. Um leve assobio. Vinha de onde?
Do alto...